Por Taciana Barreto.
José Murilo de Carvalho em seu livro “Os Bestializados: O Rio de
Janeiro e a República que não foi” como o próprio título já diz, traz à tona a
discussão acerca do período republicano na cidade carioca, capital do Brasil na
época, apontando que “havia algo mais na política do que simplesmente um povo
bestializado”¹. Que povo era este, qual seu imaginário político e sua prática
política, serão os estudos deste livro.
Na introdução do livro, José Murilo disserta sobre o problema do
relacionamento entre o povo (cidadão) e o Estado, o cidadão e o sistema
político, o cidadão e a própria atividade política. Essa dificuldade de
relacionamento pode ser explicada, por exemplo, pela tendência maniqueísta do
Estado como vilão, responsável pela inexistência da cidadania. No entanto, José
Murilo considera que o cidadão e o Estado são uma via de mão dupla - pois um
sistema de governo precisa da legitimação do povo, mesmo se essa legitimação
for apática - embora não necessariamente equilibrada.
José Murilo escreve sobre o fato do povo não ter tido
participação na Proclamação da República. Essa afirmação do autor mostra que a
transição do período monárquico para a República, que teoricamente deveria
trazer o povo para a atividade política, fica, de fato, apenas na teoria. Além
disso, ainda na introdução, o autor dá um panorama geral sobre o que será
abordado nos capítulos seguintes do livro.
No primeiro capítulo, intitulado “O Rio de Janeiro e a
República”, o autor se detém a estudar o Rio de Janeiro como o centro da vida
política nacional.
Durante a primeira década republicana, José Murilo coloca que o
Rio de Janeiro foi a cidade que mais sentiu os impactos dos últimos anos do
Império. Com a mudança de regime houve significativos problemas sociais, como o
aumento significativo da população, a mão de obra escrava foi lançada no mercado
de trabalho no pós-abolição, - aumentando o número de desempregados - forte
êxodo para a cidade, aumento da imigração estrangeira, - principalmente de
portugueses - mais homens que mulheres na cidade carioca, alto número de
solteiros e baixo número de famílias regularizadas, acúmulo de pessoas mal
remuneradas e sem ocupação fixa, - resultando, muitas vezes, em “classes
perigosas ou potencialmente perigosas” ², como ladrões, prostitutas, ciganos,
ambulantes, bicheiros, capoeiras etc. Essas pessoas eram as que mais
compareciam nas estatísticas criminais, responsáveis pela desordem, vadiagem,
embriaguez e jogo. Além disso, a cidade do Rio de Janeiro também enfrentava
problemas com habitação, abastecimento de água, saneamento, higiene e
epidemias.
Os problemas econômicos e financeiros eram frequentemente
atribuídos à abolição da escravidão. A emissão de dinheiro e a febre
especulativa começaram a viram um vício, um jogo, no qual jogava o médico, o
negociante, fazendeiros do Rio de Janeiro, entre outros. “Por dois anos, o novo
regime pareceu uma autêntica república de banqueiros, onde a lei era enriquecer
a todo custo com dinheiro de especulação.” ³
As consequências dessa febre especulativa trouxeram o
encarecimento dos produtos importados, que aumentavam a demanda e os impostos
de importação. Em 1982, houve a inflação generalizada e a duplicação dos
preços. O aumento no custo de vida era agravado pela imigração, que ampliava a
oferta de mão de obra e acirrava a luta por emprego – os portugueses eram
considerados usurpadores de empregos e exploradores dos brasileiros. Além
desses fatores, a queda do preço do café agravou ainda mais a crise, que só
começou a sair no final do governo de Campos Sales, no início do século XX. O
autor também enfatiza a circulação de ideias positivistas, liberalistas,
socialistas e anarquistas na cidade carioca.
José Murilo de Carvalho aponta ainda
a alta ressonância dos acontecimentos cariocas em outros estados. “Uma
tentativa de assassinato, um empastelamento de jornal, uma greve, uma revolta
de quartel ou de navio, que abalassem a capital, reverberavam pelo país
inteiro.” 4
Segundo o autor, as consequências da
transição de um regime para outro se reflete na população da cidade e no seu
governo. O problema central a ser resolvido pela República era em relação à
estabilidade financeira: durante quase dez anos de República houve agitações,
riscos de fragmentação do país, crise do mercado do café, dificuldades de
administrar a dívida externa; para resolver esse problema, José Murilo discute
que era necessário diminuir a influência do Rio de Janeiro na política
nacional, tirando os militares do governo e reduzindo a participação popular –
pois ambos não representavam interesses com os do grande comércio e da
agricultura. Para neutralizar a capital era necessário fortalecer os Estados,
reunindo suas oligarquias – essa foi a obra de Campos Sales, que precisava de
paz interna para negociar a dívida externa com a Inglaterra. Sales conseguiu
recuperar, com sua política deflacionista, as finanças da República, e planejou
obras de saneamento e embelezamento da cidade, tendo Paris como modelo.
No segundo capítulo intitulado “República e Cidadanias” o autor
disserta sobre a questão da cidadania na capital carioca. José Murilo destaca
que, analisando a cidadania política, exclui-se do direito ao voto os pobres,
os mendigos, mulheres, menores de idade e os membros da ordem religiosa. Desta
forma, grande maioria da população não votava. O direito social da educação
poderia dar cidadania à população, no entanto, desconhecia-se esse direito.
A República, segundo José Murilo, fez muito pouco em termos de
expansão de direitos civis e políticos. As mudanças consideradas
democratizantes – descentralização do exercício de poder – não vinham
acompanhadas da expansão da cidadania, que estava reservada aos setores dominantes.
Alguns grupos viam na propaganda do novo regime uma oportunidade
para redefinir seu papel político. Além dos propagandistas civis, conservadores
e radicais, os militares também constituíam um grupo que se salientou na
propaganda política do novo regime. Eles estavam insatisfeitos quanto ao que
consideravam limitações de seus direitos de cidadania – queriam mais peso nas
decisões políticas para a corporação militar.
Outro grupo que merece destaque pelo autor foi o dos operários
do Estado. Logo após a proclamação houve tentativas de organizá-los
politicamente. A primeira tentativa se deveu aos positivistas, com a
necessidade de incorporar o proletariado à sociedade. No início de 1890 houve
várias tentativas de criação de um Partido Operário. Após sua criação, a maior
conquista do Partido dos Operários foi ter forçado o governo através da ameaça
de greve geral, a mudar o Código Penal nos artigos que proibiam a greve e a
coligação operárias, em 1980.
O desencanto com a República fica evidente, segundo o autor, no
Manifesto do Centro Socialista aos Operários e Proletários. Os socialistas
brasileiros viram-se divididos entre os que defendiam uma cooperação direta com
o governo, a estadania, e o anarquismo, que rejeitava o sistema político.
A partir da década de 1900, aumentou a penetração do anarquismo
entre os operários. Os anarquistas negavam a ideia de pátria – como o próprio
nome diz, é família, sentimento, comunidade, integração. Já a cidadania é o
cálculo, pacto, construção, defesa de interesses. No Brasil, essa “rejeição” à
pátria se viu reforçada pela reação do governo à presença de ativistas
estrangeiros entre os operários, e pelas campanhas contra a guerra e o serviço
militar obrigatório. Os anarquistas rejeitavam a ideia de pátria ou a redefinia
de maneira radical; só admitiam a ideia de cidadania no sentido de fraternidade
universal.
Segundo José Murilo, os republicanos radicais talvez tivessem
sido os únicos a propor uma ideia de pátria compatível com a cidadania liberal
democrática, mas começou a perder viabilidade política – Rio de Janeiro e São
Paulo – devido à presença de estrangeiros entre os setores populares. Em
relação ao positivismo, o autor o coloca como a favor da ampliação dos direitos
sociais, mas negava os meios de ação política para conquista-los, tanto os
revolucionários quanto os representativos. Já os socialistas democráticos eram
os únicos a propor a ampliação dos direitos políticos e sociais dentro das
premissas liberais.
No terceiro capítulo denominado “Cidadãos inativos: A abstenção
eleitoral” José Murilo de Carvalho coloca que o exame das propostas de
cidadania deve ter como estudo os candidatos a cidadãos e das práticas
concretas de participação política.
O autor destrincha neste capítulo a opinião diferenciada de
observadores estrangeiros – visão de caráter preconceituoso - e de intelectuais
republicanos em relação ao povo carioca. No entanto, essa opinião converge no
ponto de ambos estarem buscando o cidadão ao estilo europeu, e da abstenção
política do povo.
José Murilo utiliza os censos de 1890 e 1906 para quantificar o
número de pessoas economicamente ativas. O que o autor considera de maior
importância para ser analisado, no entanto, é a pirâmide ocupacional,
extremamente ampla na base e muito afunilada no vértice. Na base estavam os
banqueiros, capitalistas e proprietários, no setor médio estavam os
comerciantes, funcionários públicos e profissionais liberais, e na base estavam
os trabalhadores domésticos, jornaleiros, pessoas sem profissão ou profissão
mal definidas.
Vale-se ressaltar o enorme contingente de estrangeiros. No censo
de 1890, 30% da população da cidade era de estrangeiros, e destes 30%, 70% eram
portugueses, que dominavam o setor do comércio. A Lei da Grande naturalização
de 1890 declarava cidadãos brasileiros todos os estrangeiros que em seis meses
não manifestassem desejo de manter sua cidadania original. No censo de 1890 –
os dados precisam ser tomados com cautela – apenas 20% dos estrangeiros tinham
optado pela cidadania brasileira. Um dos interesses em contribuir com a
naturalização era aumentar o estoque de contribuintes para servir no Exército e
Marinha.
A grande presença estrangeira – particularmente portuguesa –
reduzia o envolvimento organizado na vida política da cidade. Excluíam-se do
eleitorado: menores de 21 anos, mulheres, analfabetos, praças de pré e frades.
Desta forma, pelo critério da participação eleitoral, pode-se dizer que de fato
não havia povo político no Rio de Janeiro; o pequeno eleitorado existente era
em boa parte composto de funcionários públicos.
José Murilo aborda outro aspecto importante dessa escassez de
“povo político” no Rio de Janeiro: a auto exclusão, ou seja, a escolha por não
ser cidadão ativo era um fator frequente, por conta da fraude eleitoral e
porque o exercício do voto era considerado extremamente perigoso, devido ao uso
de capangas para influenciar o processo eleitoral.
No capítulo quatro chamado de “Cidadãos ativos: A Revolta da
Vacina” José Murilo tenta capturar o que seria as concepções de direitos e
deveres na relação entre o povo e o Estado na Revolta da Vacina.
Os contextos econômicos e políticos dessa revolta estavam
concentrados no governo de Rodrigues Alves, que fez um programa intensivo de
obras públicas, financiados por recursos externos, a fim de dar início à uma
recuperação econômica. Obras de saneamento e de reforma urbana foram feitas, e
para isso nomeou o engenheiro Pereira Passos como prefeito e o médico Oswaldo
Cruz como diretor do Serviço de Saúde Pública. Oswaldo Cruz quis implementar a
vacina obrigatória contra a varíola no Estado do Rio de Janeiro, cuja população
carioca tentou resistir. O combate à obrigatoriedade também se deu
principalmente na imprensa, destacando-se os jornais Correio da Manhã e o
Commercio do Brazil. Um dos fatores para a revolta geral da população foi o
fato do atestado da vacina ter sido exigido para tudo, desde a matrícula em
escolas até empregos e hospedagens em hotéis, viagens, etc. Outro motivo se
refere à vistoria e desinfecção das casas, ou seja, os médicos “invadiriam” as
casas das pessoas, exigiriam a saída dos moradores para a desinfecção – a
população alegava que danificada os utensílios domésticos – além de, “imacular”
o braço das filhas e esposas dos proprietários das casas. Outro motivo
interessante colocado por José Murilo é o próprio medo desenvolvido em relação
à vacina.
O que diferenciou a Revolta da Vacina dos movimentos que a
antecederam foi a intensidade e a dimensão do protesto. Segundo o autor, o
motivo de dimensão e profundidade dessa revolta foi a sua justificação moral.
“Ao decretar a obrigatoriedade da vacina pela maneira como o fizera, o governo
violava o domínio do sagrado da liberdade individual e da honra pessoal. A ação
do governo significava tentativa de invasão de espaço até então poupado pela ação
pública.” 5 Além disso, estava sendo violado um direito que a República deveria
resguardar. Desta forma, José Murilo coloca a Revolta como em nome da legítima
defesa dos direitos civis.
“A Revolta da Vacina permanece como direito quase único na
história do país de movimento popular de êxito baseado na defesa do direito dos
cidadãos e de não serem arbitrariamente tratados pelo governo. Mesmo que a
vitória não tenha sido traduzida em mudanças políticas imediatas além da
interrupção da vacinação, ela certamente deixou entre os que dela participaram
um sentimento profundo de orgulho e de auto-estima, passo importante na
formação da cidadania.” 6
No capítulo cinco denominado “Bestializados ou Bilontras?” o
autor tenta explicar o comportamento político da população do Rio de Janeiro.
De um lado, José Murilo pontua a indiferença pela participação política, a
ausência de visão do governo como responsabilidade coletiva, de visão da
política como esfera pública de ação. E do outro, o contraste com um
comportamento de participação popular em outras esferas de ação, como a
religião, capoeiragem, a assistência às festas, em que a população parecia se
reconhecer como comunidade. Na política a cidade não se reconhecia, o citadino
não era cidadão, inexistia a comunidade política.
“A lei era então desmoralizada de todos os lados, em todos os
domínios. Esta duplicidade de mundos, mais aguda do Rio, talvez tenha
contribuído para a mentalidade de irreverência, de deboche, de malícia. De
Tribofe. Havia consciência clara de que o real se escondia sob o formal. Neste
caso, os que se guiavam pelas aparências do formal estavam fora da realidade,
eram ingênuos.” 7
José Murilo de Carvalho termina este capítulo 5 respondendo à
pergunta proposta no título do capítulo: O povo bestializado era aquele que
levasse a política a sério, era o manipulado; a política era tribofe. Já o
bilontra era aquele esperto, que apenas assistia o desenrolar da política, do
governo, como fazia o povo do Rio.
Na conclusão do livro, o autor disserta acerca das
características da cidade do Rio de Janeiro, e o fato do futebol, do samba e do
carnaval darem ao Rio uma comunidade de sentimentos, por cima e além das
diferenças sociais que sobreviveram e sobrevivem.
Desta forma, conclui-se que o doutor em ciência política, José
Murilo de Carvalho, soube utilizar de maneira clara e objetiva os dados
estatísticos dessa fase da Primeira República no Rio de Janeiro, suas
características econômicas e políticas, além de trazer os embasamentos
necessários para comprovar sua tese no último capítulo: de que o povo do Rio
não era bestializado, e sim bilontra. No entanto, ele não abordou a fundo quem
era esse povo do Rio de Janeiro, fazendo uma análise superficial do povo
carioca, e de maneira elitista, ou seja, analisando-o “de cima”. Apesar disso, é um livro que merece um grande destaque na bibliografia acerca do período republicano na cidade carioca.
NOTAS:
¹
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que
não foi. São Paulo. Companhia das Letras, 1987. Página 13.
²
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que
não foi. São Paulo. Companhia das Letras, 1987. Página 18.
³ CARVALHO,
José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi.
São Paulo. Companhia das Letras, 1987. Página 20.
4 CARVALHO,
José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi.
São Paulo. Companhia das Letras, 1987. Página 22.
5 CARVALHO,
José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi.
São Paulo. Companhia das Letras, 1987. Página 136.
6 Idem. Página
139.
7 Ibidem.
Página 160.
Bibliografia:
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que
não foi. São Paulo. Companhia das Letras, 1987.
Tem jeito de fichamento!
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