domingo, 15 de abril de 2012

Resenha do livro "Os Bestializados", de José Murilo de Carvalho


Por Taciana Barreto.

José Murilo de Carvalho em seu livro “Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi” como o próprio título já diz, traz à tona a discussão acerca do período republicano na cidade carioca, capital do Brasil na época, apontando que “havia algo mais na política do que simplesmente um povo bestializado”¹. Que povo era este, qual seu imaginário político e sua prática política, serão os estudos deste livro.
Na introdução do livro, José Murilo disserta sobre o problema do relacionamento entre o povo (cidadão) e o Estado, o cidadão e o sistema político, o cidadão e a própria atividade política. Essa dificuldade de relacionamento pode ser explicada, por exemplo, pela tendência maniqueísta do Estado como vilão, responsável pela inexistência da cidadania. No entanto, José Murilo considera que o cidadão e o Estado são uma via de mão dupla - pois um sistema de governo precisa da legitimação do povo, mesmo se essa legitimação for apática - embora não necessariamente equilibrada.
José Murilo escreve sobre o fato do povo não ter tido participação na Proclamação da República. Essa afirmação do autor mostra que a transição do período monárquico para a República, que teoricamente deveria trazer o povo para a atividade política, fica, de fato, apenas na teoria. Além disso, ainda na introdução, o autor dá um panorama geral sobre o que será abordado nos capítulos seguintes do livro.
No primeiro capítulo, intitulado “O Rio de Janeiro e a República”, o autor se detém a estudar o Rio de Janeiro como o centro da vida política nacional.
Durante a primeira década republicana, José Murilo coloca que o Rio de Janeiro foi a cidade que mais sentiu os impactos dos últimos anos do Império. Com a mudança de regime houve significativos problemas sociais, como o aumento significativo da população, a mão de obra escrava foi lançada no mercado de trabalho no pós-abolição, - aumentando o número de desempregados - forte êxodo para a cidade, aumento da imigração estrangeira, - principalmente de portugueses - mais homens que mulheres na cidade carioca, alto número de solteiros e baixo número de famílias regularizadas, acúmulo de pessoas mal remuneradas e sem ocupação fixa, - resultando, muitas vezes, em “classes perigosas ou potencialmente perigosas” ², como ladrões, prostitutas, ciganos, ambulantes, bicheiros, capoeiras etc. Essas pessoas eram as que mais compareciam nas estatísticas criminais, responsáveis pela desordem, vadiagem, embriaguez e jogo. Além disso, a cidade do Rio de Janeiro também enfrentava problemas com habitação, abastecimento de água, saneamento, higiene e epidemias.
Os problemas econômicos e financeiros eram frequentemente atribuídos à abolição da escravidão. A emissão de dinheiro e a febre especulativa começaram a viram um vício, um jogo, no qual jogava o médico, o negociante, fazendeiros do Rio de Janeiro, entre outros. “Por dois anos, o novo regime pareceu uma autêntica república de banqueiros, onde a lei era enriquecer a todo custo com dinheiro de especulação.” ³
As consequências dessa febre especulativa trouxeram o encarecimento dos produtos importados, que aumentavam a demanda e os impostos de importação. Em 1982, houve a inflação generalizada e a duplicação dos preços. O aumento no custo de vida era agravado pela imigração, que ampliava a oferta de mão de obra e acirrava a luta por emprego – os portugueses eram considerados usurpadores de empregos e exploradores dos brasileiros. Além desses fatores, a queda do preço do café agravou ainda mais a crise, que só começou a sair no final do governo de Campos Sales, no início do século XX. O autor também enfatiza a circulação de ideias positivistas, liberalistas, socialistas e anarquistas na cidade carioca.
            José Murilo de Carvalho aponta ainda a alta ressonância dos acontecimentos cariocas em outros estados. “Uma tentativa de assassinato, um empastelamento de jornal, uma greve, uma revolta de quartel ou de navio, que abalassem a capital, reverberavam pelo país inteiro.” 4
            Segundo o autor, as consequências da transição de um regime para outro se reflete na população da cidade e no seu governo. O problema central a ser resolvido pela República era em relação à estabilidade financeira: durante quase dez anos de República houve agitações, riscos de fragmentação do país, crise do mercado do café, dificuldades de administrar a dívida externa; para resolver esse problema, José Murilo discute que era necessário diminuir a influência do Rio de Janeiro na política nacional, tirando os militares do governo e reduzindo a participação popular – pois ambos não representavam interesses com os do grande comércio e da agricultura. Para neutralizar a capital era necessário fortalecer os Estados, reunindo suas oligarquias – essa foi a obra de Campos Sales, que precisava de paz interna para negociar a dívida externa com a Inglaterra. Sales conseguiu recuperar, com sua política deflacionista, as finanças da República, e planejou obras de saneamento e embelezamento da cidade, tendo Paris como modelo.
No segundo capítulo intitulado “República e Cidadanias” o autor disserta sobre a questão da cidadania na capital carioca. José Murilo destaca que, analisando a cidadania política, exclui-se do direito ao voto os pobres, os mendigos, mulheres, menores de idade e os membros da ordem religiosa. Desta forma, grande maioria da população não votava. O direito social da educação poderia dar cidadania à população, no entanto, desconhecia-se esse direito.
A República, segundo José Murilo, fez muito pouco em termos de expansão de direitos civis e políticos. As mudanças consideradas democratizantes – descentralização do exercício de poder – não vinham acompanhadas da expansão da cidadania, que estava reservada aos setores dominantes.
Alguns grupos viam na propaganda do novo regime uma oportunidade para redefinir seu papel político. Além dos propagandistas civis, conservadores e radicais, os militares também constituíam um grupo que se salientou na propaganda política do novo regime. Eles estavam insatisfeitos quanto ao que consideravam limitações de seus direitos de cidadania – queriam mais peso nas decisões políticas para a corporação militar.
Outro grupo que merece destaque pelo autor foi o dos operários do Estado. Logo após a proclamação houve tentativas de organizá-los politicamente. A primeira tentativa se deveu aos positivistas, com a necessidade de incorporar o proletariado à sociedade. No início de 1890 houve várias tentativas de criação de um Partido Operário. Após sua criação, a maior conquista do Partido dos Operários foi ter forçado o governo através da ameaça de greve geral, a mudar o Código Penal nos artigos que proibiam a greve e a coligação operárias, em 1980.
O desencanto com a República fica evidente, segundo o autor, no Manifesto do Centro Socialista aos Operários e Proletários. Os socialistas brasileiros viram-se divididos entre os que defendiam uma cooperação direta com o governo, a estadania, e o anarquismo, que rejeitava o sistema político.
A partir da década de 1900, aumentou a penetração do anarquismo entre os operários. Os anarquistas negavam a ideia de pátria – como o próprio nome diz, é família, sentimento, comunidade, integração. Já a cidadania é o cálculo, pacto, construção, defesa de interesses. No Brasil, essa “rejeição” à pátria se viu reforçada pela reação do governo à presença de ativistas estrangeiros entre os operários, e pelas campanhas contra a guerra e o serviço militar obrigatório. Os anarquistas rejeitavam a ideia de pátria ou a redefinia de maneira radical; só admitiam a ideia de cidadania no sentido de fraternidade universal.
Segundo José Murilo, os republicanos radicais talvez tivessem sido os únicos a propor uma ideia de pátria compatível com a cidadania liberal democrática, mas começou a perder viabilidade política – Rio de Janeiro e São Paulo – devido à presença de estrangeiros entre os setores populares. Em relação ao positivismo, o autor o coloca como a favor da ampliação dos direitos sociais, mas negava os meios de ação política para conquista-los, tanto os revolucionários quanto os representativos. Já os socialistas democráticos eram os únicos a propor a ampliação dos direitos políticos e sociais dentro das premissas liberais.
No terceiro capítulo denominado “Cidadãos inativos: A abstenção eleitoral” José Murilo de Carvalho coloca que o exame das propostas de cidadania deve ter como estudo os candidatos a cidadãos e das práticas concretas de participação política.
O autor destrincha neste capítulo a opinião diferenciada de observadores estrangeiros – visão de caráter preconceituoso - e de intelectuais republicanos em relação ao povo carioca. No entanto, essa opinião converge no ponto de ambos estarem buscando o cidadão ao estilo europeu, e da abstenção política do povo.
José Murilo utiliza os censos de 1890 e 1906 para quantificar o número de pessoas economicamente ativas. O que o autor considera de maior importância para ser analisado, no entanto, é a pirâmide ocupacional, extremamente ampla na base e muito afunilada no vértice. Na base estavam os banqueiros, capitalistas e proprietários, no setor médio estavam os comerciantes, funcionários públicos e profissionais liberais, e na base estavam os trabalhadores domésticos, jornaleiros, pessoas sem profissão ou profissão mal definidas.
Vale-se ressaltar o enorme contingente de estrangeiros. No censo de 1890, 30% da população da cidade era de estrangeiros, e destes 30%, 70% eram portugueses, que dominavam o setor do comércio. A Lei da Grande naturalização de 1890 declarava cidadãos brasileiros todos os estrangeiros que em seis meses não manifestassem desejo de manter sua cidadania original. No censo de 1890 – os dados precisam ser tomados com cautela – apenas 20% dos estrangeiros tinham optado pela cidadania brasileira. Um dos interesses em contribuir com a naturalização era aumentar o estoque de contribuintes para servir no Exército e Marinha.
A grande presença estrangeira – particularmente portuguesa – reduzia o envolvimento organizado na vida política da cidade. Excluíam-se do eleitorado: menores de 21 anos, mulheres, analfabetos, praças de pré e frades. Desta forma, pelo critério da participação eleitoral, pode-se dizer que de fato não havia povo político no Rio de Janeiro; o pequeno eleitorado existente era em boa parte composto de funcionários públicos.
José Murilo aborda outro aspecto importante dessa escassez de “povo político” no Rio de Janeiro: a auto exclusão, ou seja, a escolha por não ser cidadão ativo era um fator frequente, por conta da fraude eleitoral e porque o exercício do voto era considerado extremamente perigoso, devido ao uso de capangas para influenciar o processo eleitoral.
No capítulo quatro chamado de “Cidadãos ativos: A Revolta da Vacina” José Murilo tenta capturar o que seria as concepções de direitos e deveres na relação entre o povo e o Estado na Revolta da Vacina.
Os contextos econômicos e políticos dessa revolta estavam concentrados no governo de Rodrigues Alves, que fez um programa intensivo de obras públicas, financiados por recursos externos, a fim de dar início à uma recuperação econômica. Obras de saneamento e de reforma urbana foram feitas, e para isso nomeou o engenheiro Pereira Passos como prefeito e o médico Oswaldo Cruz como diretor do Serviço de Saúde Pública. Oswaldo Cruz quis implementar a vacina obrigatória contra a varíola no Estado do Rio de Janeiro, cuja população carioca tentou resistir. O combate à obrigatoriedade também se deu principalmente na imprensa, destacando-se os jornais Correio da Manhã e o Commercio do Brazil. Um dos fatores para a revolta geral da população foi o fato do atestado da vacina ter sido exigido para tudo, desde a matrícula em escolas até empregos e hospedagens em hotéis, viagens, etc. Outro motivo se refere à vistoria e desinfecção das casas, ou seja, os médicos “invadiriam” as casas das pessoas, exigiriam a saída dos moradores para a desinfecção – a população alegava que danificada os utensílios domésticos – além de, “imacular” o braço das filhas e esposas dos proprietários das casas. Outro motivo interessante colocado por José Murilo é o próprio medo desenvolvido em relação à vacina.
O que diferenciou a Revolta da Vacina dos movimentos que a antecederam foi a intensidade e a dimensão do protesto. Segundo o autor, o motivo de dimensão e profundidade dessa revolta foi a sua justificação moral. “Ao decretar a obrigatoriedade da vacina pela maneira como o fizera, o governo violava o domínio do sagrado da liberdade individual e da honra pessoal. A ação do governo significava tentativa de invasão de espaço até então poupado pela ação pública.” 5 Além disso, estava sendo violado um direito que a República deveria resguardar. Desta forma, José Murilo coloca a Revolta como em nome da legítima defesa dos direitos civis.
“A Revolta da Vacina permanece como direito quase único na história do país de movimento popular de êxito baseado na defesa do direito dos cidadãos e de não serem arbitrariamente tratados pelo governo. Mesmo que a vitória não tenha sido traduzida em mudanças políticas imediatas além da interrupção da vacinação, ela certamente deixou entre os que dela participaram um sentimento profundo de orgulho e de auto-estima, passo importante na formação da cidadania.” 6
No capítulo cinco denominado “Bestializados ou Bilontras?” o autor tenta explicar o comportamento político da população do Rio de Janeiro. De um lado, José Murilo pontua a indiferença pela participação política, a ausência de visão do governo como responsabilidade coletiva, de visão da política como esfera pública de ação. E do outro, o contraste com um comportamento de participação popular em outras esferas de ação, como a religião, capoeiragem, a assistência às festas, em que a população parecia se reconhecer como comunidade. Na política a cidade não se reconhecia, o citadino não era cidadão, inexistia a comunidade política.
“A lei era então desmoralizada de todos os lados, em todos os domínios. Esta duplicidade de mundos, mais aguda do Rio, talvez tenha contribuído para a mentalidade de irreverência, de deboche, de malícia. De Tribofe. Havia consciência clara de que o real se escondia sob o formal. Neste caso, os que se guiavam pelas aparências do formal estavam fora da realidade, eram ingênuos.” 7
José Murilo de Carvalho termina este capítulo 5 respondendo à pergunta proposta no título do capítulo: O povo bestializado era aquele que levasse a política a sério, era o manipulado; a política era tribofe. Já o bilontra era aquele esperto, que apenas assistia o desenrolar da política, do governo, como fazia o povo do Rio.
Na conclusão do livro, o autor disserta acerca das características da cidade do Rio de Janeiro, e o fato do futebol, do samba e do carnaval darem ao Rio uma comunidade de sentimentos, por cima e além das diferenças sociais que sobreviveram e sobrevivem.
Desta forma, conclui-se que o doutor em ciência política, José Murilo de Carvalho, soube utilizar de maneira clara e objetiva os dados estatísticos dessa fase da Primeira República no Rio de Janeiro, suas características econômicas e políticas, além de trazer os embasamentos necessários para comprovar sua tese no último capítulo: de que o povo do Rio não era bestializado, e sim bilontra. No entanto, ele não abordou a fundo quem era esse povo do Rio de Janeiro, fazendo uma análise superficial do povo carioca, e de maneira elitista, ou seja, analisando-o “de cima”. Apesar disso, é um livro que merece um grande destaque na bibliografia acerca do período republicano na cidade carioca.


NOTAS:

¹ CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo. Companhia das Letras, 1987. Página 13.
² CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo. Companhia das Letras, 1987. Página 18.
³ CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo. Companhia das Letras, 1987. Página 20.
4 CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo. Companhia das Letras, 1987. Página 22.
5 CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo. Companhia das Letras, 1987. Página 136.
6 Idem. Página 139.
7 Ibidem. Página 160.

Bibliografia:  

CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo. Companhia das Letras, 1987.

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